Abrunheiro-de-jardim em flor, Jardim da Cruz do Tabuado — © 2023
De há dias que o tempo se pôs com cara primaveril. Alguém ontem comentava-o.
— O tempo finalmente está a ficar bom.
Ao depois, como toda a gente que não ouve senão o evangelho do notíciário vigente, logo contrapôs.
— Mas em São Paulo estão 60º; temperatura sentida — não fosse o tempo primaveril no advento da Primavera fazer esquecer o dogma.
Ora bem — pensei —, 60º no lombo em São Paulo é obra. Obra apostólica, com missa rezada…
Lá procurei sossegar a pessoa.
— Não deve haver problema. Os brasileiros estão todos cá.
Buddy Clark & Dolly Mitchell — Moonlight Cocktail
(Realização: Dave Gould, 1942)
A propósito dum aportuguesamento levado a cabo em dicionários, levantou um leitor o caso de bóer e bur, ressalvando que o que ouve pronunciar é buar (búar).
Para lhe responder de imediato fui ver primeiro bóer e, de feito, está aportuguesada assim. Não só portuguesada, como infopædiada e priberamizada, e tem já das tais coisas: os brasileiros abrasileiraram por seu lado bôer (embora digam que aportuguesaram, como de costume), que aliás é como me calha mais dizer. Somo a isto que a um compatriota nosso de Moçambique que ao depois passou à África do Sul ouvi sempre bur (e daí, talvez, búar…).
Para mais cabal resposta e para minha própria ilustração, prometi que havia de ir aos dicionários impressos que tenho, do que dou agora nota.
Aulete, 1.ª ed. (Lisboa, 1881). Omisso.
Aulete em linha. Bôer, com circunflexo, à brasileira. O verbete original (original não sei como porque na 1.ª ed. é omisso) remetia sem mais para bures, no plural, omitindo bur. O verbete actual bôer dá já definição e o plural bôeres. (O Aulete emigrou para o Brasil há muitos anos. Talvez hoje em dia um verbete original seja depois que lá chegou…)
Dicionário Enciclopédico Ediclube (1996). Boer (sem marcação de acento ou pronúncia). Como dicionário enciclopédico que é manda ver Guerra dos Boers [sic]. Não remete todavia para bur, mas no verbete deste remete para a forma anterior.
Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Morais, 2002). Boer (sem marcação de acento ou pronúncia). Omite bur.
Lello Prático Ilustrado (1976). Boer (sem marcação de acento ou pronúncia). Prefere bur, por grafia exacta, e remete para esta forma.
Porto (5.ª ed.,1974). Boer (sem acento), o mesmo que bur, verbete este onde refere que a pronúncia portuguesa mais vulgar é bóer (assim mesmo, com acento).
Mais.
Dicionário Etimológico. Boér (palavra aguda); remete sem mais para bur, onde estabelece a entrada do vocábulo na língua portuguesa em 1903 com a publicação de «A Guerra Anglo-Boer. Impressões do Transvaal» (2 vols., Lisboa, Typographia Universal). No verbete bur explica ainda que a pronúnicia vulgar, por influência da escrita, é boér, que é curioso…
O Corpus do Português regista boer (no singular) pela primeira vez na obra de 1903 vista acima, e boers (plural) nos Contrastes e Confrontos (1907) de Euclydes da Cunha, uma compilação de artigos de imprensa anteriormente publicados, no caso, n' O Estado de S. Paulo («Contra os caucheiros», 22/V/1904; «Civilização», 10/VII/1904) e duma entrevista ao Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 14/I/1906.
Outras ocorrências do plural boers no Corpus são posteriores e o plural boeres surge ao depois em textos mais recentes. Os Boers da Terrivel Guerra na Africa do Sul entre Inglezes e os ditos, talvez anteriores a 1903, não estão no Corpus do Português e a forma Bur também lá não consta nenhuma vez.
Em todos os dicionários o sentido geral do nome ou adjectivo, em qualquer das formas, remete para africânder (gente) ou colono sul-africano branco de origem holandesa.
Um outro sentido, porém, que, salvo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, nenhum dos dicionários aqui arrolados dá a boer é o de língua africânder. O africânder, ou holandês do Cabo, foi normalizado como língua escrita por 1875. Até aí a língua dos colonos do Orange e do Transval era também designada como boer. Não parece que este sentido tenha feito falta na língua portuguesa, porquanto nem do termo há registo antes da Guerra dos Boeres.
Todos os dicionários remetem (quando remetem) ao holandês como origem da palavra, o que é verdade. Porém, cuido que boer nos veio ao português por via do inglês. Basta lembrar que foi da África do Sul (ou da Colónia do Cabo) que nos chegou pelas circunstâncias históricas que se conhecem. Nada mais lógico nesse contexto do que um plural já acabado à ingleza naqueles tempos (e hoje, mais do nunca!…) É o caso do plural que encontramos nos primeiros registos da palavra em textos portugueses — boers — o plural inglês; o holandês boeren e o africânder boere, nenhum deles consta (e de estranhar seria, dá-me impressão…)
E bem, mas a final, boer, boér, bóer/bôer, bur?…
Boer (boér > bóer/bôer) parece estar consagrado. De mais, é evidente que o vocábulo entrou no português pela escrita e foi dela que lhe moldámos a oralidade, não do holandês nem do holandês do Cabo (ao inglês já lá vamos…) Se no primeiro tempo o retorno da escrita sobre a oralidade deu a pronúncia boér, como nos indica José Pedro Machado no Dicionário Etimológico (cuja 1.ª ed. é, recordo, de 1952), os dicionários mais recentes convergem agora na pronúncia bóer/bôer, fenómeno de recuo da tónica a que não há-de ser estranho o tresandar «amaricano» na barbarização do português nas últimas décadas. (Cá está, pois, o inglês). Ante a escrita boer, sem acentos, de quando nos chegou a palavra em 1903, o génio do nosso idioma manda naturalmente ler boér em vez de bóer. Em todo o caso talvez o melhor fosse omitir de vez acentos em boer, como em tempos se decidiu para comboio ou dezoito por causa de pronúncias divergentes.
Bur, por seu lado, ressoa a purismo de lexicógrafo tirado muito à medida sonora do holandês do Cabo (ou do inglês do Cabo), que não é nada nosso, daí que se só ache em dicionários. Se se de lá perder, quem dele dará por falta?
A Guerra Anglo-Boer. Impressões do Transvaal, Lisboa, Typ. Universal, 1903, in Livraria Fernando Santos.
Terrível Guerra na Africa do Sul entre Inglezes e Boers. Folheto em língua portuguesa imp. no Porto, [s.d.], in Ephemera, apud A.B.M., «Moçambique, Portugal e a guerra Anglo-Boer de 1899-1902», The Delagoa Bay Review, 15/X/2010.
Diz hoje que há greve de jornalistas, mas o gabinete de comunicação e relações públicas da T.A.P. sempre conseguiu furá-la. A notícia aí está. Vamos a ela.
«São 79 anos a abraçar o mundo»? Talvez.
«[A] Companhia aérea assinala esta quinta-feira o seu 79.º aniversário»? Não.
A companhia aérea Transportes Aéreos Portugueses, S.A.R.L., i.é, a T.A.P., foi criada em 1 de Junho de 1953 pela conversão da secção de Transportes Aéreos Portugueses da Direcção-Geral da Aeronáutica Civil em sociedade por acções. Até aí, os Transportes Aéreos Portugueses, i.é, os T.A.P. mais não foram que uma secção do Secretariado da Aeronáutica Civil (S.A.C.) e em seguida da D.G.A.C. até 1953.
A companhia aérea tem por conseguinte 71 anos incompletos. Completá-los-á, se Deus quiser, no próximo dia 1 de Junho e, por mais de 20 anos, a companhia aérea contou o aniversário da sua fundação como era devido, no dia 1 de Junho. Disso, desses tempos, há boas provas na colecção do seu boletim trimestral «Inter TAP» que então a Companhia publicava.
« Em 1 de Junho [de 1971], às 20 e 30, foi celebrado, condignamente, em Lisboa, o 18.º aniversário de nossa Organização […]
Houve, pois, um jantar de confraternização, no Hangar n.º 6, no qual participaram cerca de três mil funcionários.
Presidiu o Eng. Vaz Pinto, presidente do Conselho de Administração da Companhia, que dava a direita ao Ministro das Comunicações, Eng. Rui Sanches [&c.]»Inter TAP, n.º 33, 2.º trim. de 1971, p. 15.
18.º aniversário em 1971. Com representação do governo. Era, portanto, oficial.
Até que veio a viradeira e (trivial!) rescreveu-se a História.
Em 16 de Abril de 1975 (Dec.-Lei 205 E/75, de 16/4/1975) a «companhia dos Transportes Aéreos Portugueses, S. A. R. L., é declarada nacionalizada com eficácia a contar de 15 de Abril de 1975». (Dez anos depois disto afadigava-se a Comissão de Trabalhadores em comemorar os 10 anos da bem dita nacionalização. Mais um aniversário para multiplicar a festa… Cf. «10.º Aniversário da nacionalização da TAP-Air Portugal», in Jornal da TAP, n.º 64, 15/1/1985.) E em Setembro de 1975 [22.º ano da constituição da companhia] a T.A.P. comemorou o seu… 31.º aniversário!
Motivo?
Num artigo do Jornal da T.A.P. da época, que não tenho posso agora identificar, um certo Jorge Lemos Peixoto aduz as razões do recuo da data da fundação da Companhia de 1953 — «com a passagem ao Capital Particular» — a 1944:
« […] Com a TAP nacionalizada, nada mais lógico que a reposição da verdade histórica, tanto mais que o seu primeiro Director — não havia Conselho de Administração — foi essa figura inconfundível, de dinamismo sem par, Humberto Delgado […]»
O sublinhado é meu. A «verdade histórica» é do articulista entendido no caso. A colagem ao Humberto Delgado é o mais evidente. Òbviamente…
A nacionalização e os colectivistas de 75 galgaram assim a fundação da T.A.P. para a data criação do Secretariado da Aeronáutica Civil (um órgão da administração do Estado, hoje A.N.A.C., criado pelo Decreto-Lei n.º 33 967, de 22/9/1944), a descaso da sua real constituição como sociedade anónima apenas em 1 de Junho de 1953, e que valera como já vimos até àquele ano de 75. (Atente-se aqui a profundidade da dedicação dos revolucionários para revolver as mais ínfimas coisas: mudar a idade da T.A.P. é um formidável exemplo.)
Não estranha a confusão, porém, porque para colectivistas uma empresa nacionalizada e a administração pública é tudo o mesmo, mormente num período revolucionário em curso.
Tábua rasa à criação da companhia aérea, ignoraram também que os T.A.P. só apareceram em 1945 no âmbito do S.A.C., como mero departamento seu, ou sua secção, pela Ordem de Serviço n.º 7 do próprio director do dito Secretariado, Humberto Delgado. É por esta O.S. do S.A.C., publicada em 14 de Março de 45 que, por fim (ou até ver), o C.A. da T.A.P. em 6/7/1982 (Acta n.º 1194) deliberou que a partir de 1/1/1983 fosse considerado o dia 14 de Março como referência do aniversário da T.A.P. e a idade da companhia aérea passasse a ser contada a partir de 1945.
Resumindo: a T.A.P. comemorou 20 anos em Junho de 1973 (há uma publicação comemorativa de que não possuo a ref.ª agora); não comemorou 22 anos em Junho de 1975, mas festejou o 31.º aniversário em Setembro desse ano louco; e deixou de haver de fazer 39 anos em Setembro de 1983 porque deliberou fazer 38 logo em Março desse ano.
Saldo final: mais 8 anos [uma dessas conquistas de Abril]. E assim parece que faz 79.
Conclusões: a História é o que foi; a historiografia é o que se queira; e a idade da T.A.P. é um bocadinho como agora essa coisa da identidade de género.
McDonnell Douglas DC-4, CS-TSD, dos T.A.P., Aeroporto da Portela, c. 1948.
Col. da Portimagem, in Flickr.
(Revisto às 11h25 da noite.)
(Acrescentadas imagens do sobrescrito da companhia T.A.P., S.A.R.L. e medalha comemorativa da nacionalização em 17/III às 4h20 da tarde, ambas do Museu da T.A.P., in TAP Portugal (TAP70) no Flickr.)
Visa (Citroën), Lisboa — © 2024
Por cartões, ocorre-me agora: não são eles de há tempo para cá todos em plástico? [A tanto chega a semântica de cartão…] Como não se lembraram deles quando proscreveram as palhinhas?! É que — testes de laboratório comprovam — os maricoplásticos andam para aí espalhados por todo o lado e são muito, muito maus para o planeta.
Por planeta, já agora também. Se a Terra é redonda, por que lhe chamam plan… eta?!
Ontem estendi-me em reminiscências da escola primária. Desse tempo de aprender a ler e a escrever e contar o que me custava mais eram as redacções. Eram o mais difícil. Não gostava. Não gostava porque embatucava. Nunca sabia o que dizer e ficava aflito de não saber, logo escrevia pouco. E uma redacção curtinha era sempre má.
Fora as redacções, na escola, era tagarela. Ao depois, gostava era de brincar e do que gostava mais era brincar com carrinhos. Carrinhos a imitar os carros de verdade, nunca carrinhos de fantasia que não existiam. Outros miúdos tinham desses e achavam-nos cheios de pinta, galácticos futuristas. Eu achava-os irreais e feios porque eram mesmo feios e não reproduziam a realidade. Não gostava. De modo que os que tinha eram um Fiat 127, um BMW 3.0 C.S.i., um Citroën Maseratti (este eu dizia Mesaráti), um Rolls Royce bordeaux que abria as portas, uma debulhadora encarnada, uma escavadeira, um tractor Ford amarelo e azul com atrelado, um camião de cavalos Leyland… E um Jeep amarelo.
Certa vez arranjei maneira de pôr o Jeep numa redacção. — Há-de ter saído uma coisa esperta, essa redacção! — Mas escrevi jipe. Era como dizia. Não me lembro de nenhuma das redacções que fiz, nem desta senão por ter nela posto o jipe, que era o meu jipe. E lembro-me talvez porque a senhora professora me emendou a palavra jipe para jeep (ou Jeep).
(Agora que vou a meio desta redacção sobre o jipe, fui ver e vejo já escrevi antes sobre o Jeep. Repito-me, portanto, deve ser a velhice.)
Emendou para jeep — ou talvez melhor, Jeep, cuido crer — porque Jeep era a maneira de escrever o nome duma marca que se tornou nome comum. O caso será como fazer a barba com uma Gillette e não uma gilete (que se até lê gilête por mais que os entendidos priberem de pressa a dizer o contrário), cortar papel com um X-Acto e não com um xisacto (e muito menos x-ato, que só corta na inteligência) ou escrever com uma Bic e não uma bique. De devirem designações comuns não devem deixar-se de escrever correctamente como nomes próprios que são, é o que julgo.
Voltando aos carrinhos, aqueles a lembrar naves espaciais com rodas de que eu não gostava e outros putos achavam com uma grande pinta a armar a um futuro estilo Mr. Spock e capitão Kirk. Esses putos cresceram e são já são tão velhos como eu, mas tiveram herança em filhos de pior gosto e pranchetas donde uns e outros deram em desenhar os mais modernos automóveis que vejo passar na rua. Nessa voragem até noção (e o modelo) do Jeep foi tragada resultando em horríveis suves.
Suves!
Neste caso abro excepção com suves e não S.U.V. só para amesquinhar a coisa.
(Os carrinhos são da rede, mas não sei donde.)
Na 3.ª ou na 4.ª classe, a senhora professora veio um dia e fez introdução a um tema para lá das contas e da tabuada, dos ditados, das redacções e do Meio Físico e Social (esta, uma coisa importante). A partir daquele dia íamos começar a ter também, regularmente, lições de História de Portugal.
Não foi o caso!…
Bem, logo ali, foi. Contou do Viriato, dos Lusitanos, dos Romanos, e eu fascinou-me a história heróica do Viriato contra os Romanos e, por conseguinte, a História de Portugal que estava para vir. Queria mais. Como lá por casa havia uma caderneta que eu folheava havia muito (ainda a tenho, era do meu irmão), e já lá tinha visto os cromos do Viriato e dos Lusitanos, a par de Lígures, Celtas, Iberos, Celtiberos, dispunha-me agora a ler as legendas dos cromos e não só olhar os bonecos como até aí. Tal foi o interesse que a lição de História de Portugal me suscitou.
Dava-se todavia que, de História, aos 8 para 9 anos, foi o único que consegui: a tal caderneta de cromos, incompleta e riscada por mim na primeira infância, antes de saber ler ou escrever, quando descobri o uso que podiam ter as canetas Bic. Livros não tinha, salvos uns Zés Cariocas do meu irmão, um livro do Nodi sem capa, também seu… — De meu, havia um livrinho infantil com a história dum sapato que encontrou o seu par. Uma outra sr.ª professora lá da escola dera-mo em troca dum postal da T.A.P. que eu arranjara não sei já como, o qual lhe agradara. De livros, então, não me lembro de mais nenhum… Ainda estavam para me chegar o do Robinson Crusoë, que me deu a minha madrinha e me fascinou, e o primeiro d' Os Cinco, prenda de Natal da Cristina gorda, uma namoradinha do meu irmão. Nenhum deles de História, porém, mas apreciei-os.
De lições regulares de História de Portugal não foi porém o caso, disse lá atrás, porque a sr.ª professora acabou por não dar mais nenhuma; eu bem desejei, mas fiz a 4.ª classe e adeus! Ficámos no Viriato. Só ao depois no 2.º ano do ciclo preparatório me consegui desaugar… No 1.º, pelo jeito, ainda era cedo; em vez de História de Portugal havia antes Estudos Sociais, coisa mais importante, como o Meio Físico e Social… — Agora que nele penso, dá-me para parafrasear Salazar: estava muito bem assim e não podia ser doutra forma; Portugal acabara de acabar e com o processo revolucionário em curso ou logo a seguir, ensinar a sua História aos meninos tornara-se supérfluo!…
Saciei-me enfim no ano do meu 2.º ano e foi também nesse tempo que na televisão apareceu um programa a falar de História. Em 78 foi para o ar a «Gente de Paz» e foi com ela que fiquei a saber do prof. Hermano Saraiva. Como outros escolhiam o Eusébio, acho que escolhi ali um ídolo (o Yazalde nem o Damas também já não jogavam no Sportem, portanto…)
Tem graça porque ao princípio dava o programa e não liguei muito, como era natural. Era coisa de conversa aborrecida assim ao modo do Vitorino Nemésio (o homem das letras, chamava-lhe a minha mãe), nada que despertasse interesse a uma criança. Mas liguei o suficiente para achar certa vez que o Gomes Ferreira, que era locutor, estava para ali a falar havia um ror de tempo e disse-o, calhando, frustrado de não ser antes um filme de cowboys ou do Espaço. Ao que me a minha mãe respondeu: —«Este não é o Gomes Ferreira, filho. Esse é locutor. Este é o Hermano Saraiva, o que fala da História.»
De maneira que, foi assim: como falava da História pus-me a ver.
José Hermano Saraiva, Sebastianismo.
(Gente de Paz, R.T.P., 1978)
Começou-me por parecer um lugar familiar… — Eh pá, eu conheço este sítio!… — E fazia-me espécie pois não conseguia atinar com ele.
— Eu conheço isto, com um raio, mas onde, onde diabo é?!… — e olhava… — O carro é um mini… Dos autênticos… — e tornava a olhar…
— Eh pá, pois se eu conheço este lugar, como diabo não sei agora dizer onde é?!…
Até que descobri e, é do tempo em que as empenas eram da cor do resto do prédio…
Saudade, 1553, Lisboa, [s.d.].
Col. da Portimagem, in Flickr.
Guilherme Boyce — Sinfonia n.º 1 em si bemol (Allegro)
Simão Murphy (maestro), Orquestra Barroca da Haia, Nova Academia Holandesa.
A menina do super não me pôde vender um yoghurt porque só se vendia, citei, «em packs de quatro».
Conjunto parece que diz agora que é pack… Parece mesmo porque a chancela da Porto Editora dos dicionários faz parecer que parece que é mesmo oficial. Foi isto que me um leitor anónimo irònicamente deu por mote…
Dantes era isto simplesmente vender ou comprar «por atacado», coisa que já noutro tempo também ficava mais em conta. Mas, é lá isto maneira agora de falar?!… Só por piada, como quando se ainda ouve que «à dúzia é mais barato» — outra locução que não serve hoje senão à piada (e cuido que muitos que a lançam nem bem sabem quanto é uma dúzia). Depois, a graça daqueles modos de dizer antigos verteu todinha ela agora para o uivar em «pack» que se ouve.
Posto isto, o lexicógrafo trabalhou para aquecer ao adicionar tão inútil verbete ao dicionário: os antigos que haja entendem-se com clareza sem ele, como bem vemos; os modernos sabem «amaricano» a rodos, pelo que não hão-de ir a dicionários por «pack» nenhum. Mas que não esmoreça o nosso lexicógrafo nem a Porto no afã de encher chouriços e forrar de ganga estrangeira o idioma. E louve-se-lhes a prolixidade eloquente da língua de pau em que elaboram «um determinado produto e um ou vários produtos complementares» para dizer um conjunto de artigos afins vendidos a preço mais em conta (perdão!) «a um preço inferior ao dos produtos comprados individualmente», embora em rigor, nesta última, devessem antes ter redigido «a um preço unitário inferior ao de cada produto» &c.
A menina do super não me pôde vender um yoghurt porque só se vendia, cito, «em packs de quatro».
Conjunto parece que diz agora que é pack.
Salvo, cuido, se for musical, caso em que se dirá banda. Mas só se for ela de rock, porque se for de coreto já (ou ainda) será filarmónica. — Fanfarra também se já não diz ou não ouve (dizer), apesar de fanfarrões não faltarem…
Não confundir em tudo isto, porém, banda com bando, porque bando, diz agora, é gang. Mas só se for de malfeitores, porque se for de pássaros é bando como dantes…
Hum!… Ocorre-me também que ele há quem chame passarões aos malfeitores… Isto é, se for um bando deles, ou gang. É que se for só um passarão, especialmente em interrogatórios da polícia, há muito quem o diga melro: no caso, logo que o melro começa a cantar…
Deste arrazoado parece agora que o português só se deixa de armar ao fino com ganga estrangeira (yoghurt, pack, rock, gang) quando o caso mete polícia. É o que parece.
Dionne Warwick — I Say A Little Prayer
The Ed Sullivan Show, 1968
Mary Quant, mini-saia, anos 60, estilo fotografia de estúdio:
Mary Quant, mini-saia, anos 60, estilo fotografia de rua:
[Audrey] Hepburn ao estilo de Alphonse Mucha:
Marilyn a óleo ao estilo de Rembrandt (esta, por fim, convence-me; ao depois piorou…)
Dantes, quando havia alguém sempre de cigarro no dedo, dizia-se que fulano era uma chaminé ambulante. À semelhança, hoje há gente sempre, sempre de telefone na mão. Só não há quem lhe chame cabines telefónicas ambulantes.
Por falar em cabines telefónicas: dantes também as de Lisboa eram semelhantes às de Londres. Pedi por conseguinte à «inteligência artificial» (inteligência?!…) que me produzisse uma imagem a preto e branco duma cabina telefónica em Lisboa. Pedi-lhe em mau inglês. O que saiu foi isto: uma real cabine telephonica britânica, a cores, numa espécie de Lisboa com certo ar de si pelo empedrado da calçada, pela roupa estendida e sobretudo pela parede lambuzada de grafitti. O lúgubre da imagem em geral, não sei se é estereótipo inglês, se da tal dita «inteligência». Calhando, são ambas o mesmo…
Sacor, Cabo Ruivo, [s.d.].
Mário Novais, in bibliotheca d' Arte da F.C.G.
Abastecimetno de um Caravela da T.A.P., Aeroporto da Portela, [1962-75].
Mário Novais, in biblioteca d' Arte da F.C.G.
Tradução portuguesa a partir do francês, com arrimos de fórmulas e léxico antigo, o que dá tom de época ao texto.
Edição cuidada, mas o aportuguesamento dos nomes é conforme — em geral não… Num caso coexiste Mamude e Mahmud na mesma história.
A páginas tantas (666 e ss.) insinua-se a maricagem por novidade em voga — vício do fundo dos tempos e das civilizações a aflorar de maneira muito estranhamente actual — Modas!…
Ou será do tradutor?!…
As Mil e Uma Noites têm tiradas picarescas de certa graça. Aprecie-se, no caso, em que estilo…
(Marido à mulher, tida por estéril:)
« Juro que doravante prefiro cortar o meu zebb a meter-to na coisa! Vejo claramente visto que fazer coisas contigo é tempo perdido; tanto se me dá meter o instrumento num buraco de um penedo como tentar fecundar terra maninha como a tua: o resultado é o mesmo! Sim, por Alá! Tenho sido um perdulário e tenho passado a vida a desperdiçar fodas num abismo sem fundo!»
(Resposta:)
« Ah, velho frígido! […] Julgas então que, de nós dois sou a defeituosa? Não julgues tal, avô! Atribui as culpas aos teus tomates frios! Sim, por Alá! Os teus tomates é que arrefeceram e segregam um líquido sem qualquer virtude! Vai comprar qualquer coisa que engrosse essa água! E verás depois se o meu fruto possui boa semente ou se é maninho! […] Vai à drogaria e lá encontrarás a mistela que engrossa os tomates do homem.»
(A mistela:)
« Tomou duas onças de xarope de cúbeda-da-china, mais uma onça de extracto de cânhamo-da-jónia, mais uma de cariofília fresca, mais uma de cinamomo-vermelho de Serendib, dez dracmas de cardamomo-branco do Malabar, cinco de gengibre-da-índia, cinco de pimenta-branca, cinco de pimento, mais uma onça de bagas de bauínia-da-china e meia onça de tomilho-bravo. Misturou tudo com muita habilidade, depois de pisado e peneirado, e misturou-lhe mel puro, para ligar bem a massa, acrescentando por fim cinco grãos de almíscar e uma onça de ovas de peixe piladas. Não deixou de adicionar também xarope de água de rosas, posto o que deitou tudo na malga de porcelana. […] Aqui tens a mistura soberana, que endurece os tomates do homem e dá espessura ao suco fluido de mais […] Tens de comer estas papas duas horas antes de cada arremetida.»
Em geral as histórias são mais estéreis do que o que se pode ler acima.
Fui lendo e repondo na estante, por anos.
As Mil e Uma Noites: Noites 1 à 270 / J.-C. Mardus (ed.), Manuel João Gomes (trad.). — [Lisboa] : Círculo de Leitores, 2007. — 750 p.; 24cm. — A Mil e Uma Noites, v. 1 (marcador incluído no vol.).
Nos da minha geração há — houve — um hiato de 20 para 30 anos nas memórias. Memórias de coisas de nada que me mostravam o ir e vir do mundo, me povoaram a ideia em menino e que, enfim, se foram. Desapareceram. Com isso a memória arrumou-mas num qualquer canto recuado da mente até me nunca mais haver de lembrar.
Foi comigo o caso com as pastilhas Pirata, que me apareceram certa vez inesperadamente no Mistério Juvenil, .Com (já deve haver uma abreviatura para o .Com antecedido de vírgula e tudo, como S.A.R.L. e C.ª, Lda., não?!…) Uma sensação de saudade veio-me de revê-las que não sei bem dizer. Por redescobrir aquelas imagens de algo já completamente esquecido. Não me aparecendo nunca mais, nunca mais me haveria de lembrar delas: as pastilhas Pirata.
Outras memórias de infância me não estariam tão esquecidas: o Chapi-Chapô, o Professor Baltasar e o quê, mais?… Mas quando vagabundeei a rebuscá-las e as achei tive à mesma a sensação de cobrar saudades. Muitos da minha geração que foram apanhados pela rede da Internete há uns 20-25 anos hão-me de entender. Tiveram decerto sensação semelhante, a julgar do que li ou e fui vendo.
Ao depois que estas coisas retornaram, com o espalhar da rede, a memória esbatida dum passado esquecido tornou-se de novo presente. Foram salvas do esquecimento completo, pelo menos na memória de quem sente saudade. São agradáveis recordações que me alegram recuperar.
Lembro-me de ter pensado então que, nas malhas desta rede, a minha geração e uma ou outra para trás, também nela apanhada, logravam recuperar brandas memórias perdidas com um saborzinho e saudade que doutra forma difìcilmente ou nunca mais recuperariam. Era uma coisa só delas, dessas gerações mais antigas, porquanto aos novos lhe não havia ainda passado tempo de as perderem. Os mais novinhos, cresceriam já de tal maneira emaranhados nas malhas da rede que seria impossível que lhe alguma vez levassem sumiço suas tenras memórias. Logo, nem lhe a saudade, cuido, poderia alguma vez dar.
Talvez seja assim ou talvez não.
Não sei que pense das gerações mais novas. Cuido sòmente que a influência abismal dos meios de comunicação (da rede, i.é) e a sua imersão neles (nela, pois…) como nunca houve nada antes, lhe venha a moldar a mente muito a contrário de sequer formar memórias além das desta manhã. Nem cuido que venham estes últimos a sentir saudade senão do que ainda está para acontecer. — Como o fim do planeta! — Eles que esperem.
(Revisto ao depois do almoço porque antes, já estava na mesa…)
« Ocorrem-me agora os vocábulos: moral e espada.
Não raro é ouvir-se isto: «Fulano tem sido tão infeliz que já perdeu toda a moral».
Ora este substantivo empregado assim quer dizer que Fulano, em consequência das suas infelicidades, já não tem coragem para reagir nem ânimo para combater e deve empregar-se no masculino. Assim: «Fulano… perdeu de todo o moral».
Se, porém, quisermos referir-nos à ciência dos costumes, à ética dum povo, etc., então não se dirá o, mas a moral.
Digamos pois: «Respeitemos e acatemos os deveres da moral, mas levantemos o nosso moral perante as contrariedades da vida e os golpes da adversidade e do destino; não pratiquemos actos ofensivos da moral, mas conservemos bem o moral, perante a luta com os nossos adversários e até perante a doença».
Acerca de espada, toda a gente sabe o que é uma espada: arma feita com uma lâmina de aço que se mete numa bainha, e que usam os nossos oficiais do exército e os soldados de cavalaria. Mas há aí agora uns automóveis que, talvez por mais ou menos compridos, como as espadas, o nosso povo chama espadas e eu já ouvi a um motorista dizer que gostava de dirigir uma espada assim, quando, tratando-se de automóvel, se deve dizer um espada.
Portanto, «Fulano, que é muito rico, tem um rico e belo espada, mas, como oficial que é do exército, usa uma linda e rica espada, quando vai fardado. Não haja confusões.
Como estes dois vocábulos: moral e espada, há muitos outros, mas estes parece-me que são os que têm suscitado maiores dúvidas.»Prof. Faria Artur, «Salada francesa», in A Bem da Língua Portuguesa; Boletim mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, Ano VI, n.º 7, Julho de 1955, pp. 310-311.
Em português e pela gramática não vamos lá… O português admite dois géneros, a saber, masculino e feminino. Tertium non datur. Outros idiomas há que admitem um neutro para objectos e seres inanimados; coisas e animais — não sei se não será o caso… — A falar português, porém, não se consegue e, por mais que se insista em mutilar a escrita, é a falar que se a gente entende. E desentende. Ou também subentende… Fora disto, passamos a grunhir. Mas isso, que cuido vir a tornar-se até bastante possível, não será já português.
Pela moral também lá não vamos, mas… Haja todavia alguma esperança e que se com ela ao menos algum moral alevante ante as contrariedades da vida, os golpes da adversidade e do destino, como isso que há agora de poder nascer-se peixe em carcaça de gente. Gente, se vamos bem a ver, sempre é comum de dois [ou mais] — inclusivo, portanto. E certo, certo é que um peixe pode muito bem por conseguinte ser uma pescada; se a culinária for a que julgo ser do preceito, dá até para pescadinhas de rabo na boca.
Só por fim um espada é que, não havendo de ser peixe — lepidopídeo que por sinal tem variedade de preto, por distinto —, pois bem, fora isso, um espada só dá isto.
Edsel (publicidade), [publicação n/ id.], 1958.
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